Salve, Salve, FLAleluia!
Por motivos particulares, precisei me afastar temporariamente do blog. No entanto, você, leitor, sairá ganhando neste período. Publicarei aqui, sempre às quartas-feiras, uma série de artigos de autoria do Walter Monteiro* sobre a questão societária do C.R.F. e os programas de incentivo ao torcedor em geral, aproveitando este recesso forçado do futebol rubro-negro.
São artigos normalmente longos, para tratar o tema com a profundidade necessária e com o objetivo de evitar o lugar-comum. Trata-se de um material de altíssimo nível para reflexão e debate sobre o Flamengo. Concordando ou discordando das ideias do autor, tenho certeza de que você gostará da contribuição.
Segue o primeiro, que corresponde a um convite para discussão sobre o papel de um programa de sócio torcedor.
FLAmém!
REFLEXÕES SOBRE O FLAMENGO
PARTE 1
PARTE 1
SÓCIO TORCEDOR, MITOS E CRENÇAS.
Com esse artigo, inicio uma pequena série de reflexões sobre o futuro do Flamengo. Normalmente os debates acerca da gestão do clube são poluídos por uma atmosfera eleitoral muito intensa, onde sobram críticas para a administração do momento e promessas de um mundo melhor para o mandato seguinte - tem sido assim há, digamos, uns 20 anos. E quase sempre quem se dispõe a propor algo está, direta ou indiretamente, comprometido com alguma corrente política do clube, está a serviço desta ou daquela candidatura.
Eu mesmo, na última eleição, escrevi um documento pomposo e pretensioso, mas inteiramente influenciado pelo meu apoio à Patricia Amorim. Dessa vez, porém, nem pretendo repetir meu apoio à Patricia, nem me empolgo com as pré-candidaturas de oposição já em movimentação. Essa certa neutralidade me dá a impressão de que posso refletir com um tantinho a mais de isenção sobre o cotidiano da Gávea e estimular que outros rubro-negros enriqueçam o debate. Abro a série com um tema que está na ordem do dia de todos os que pensam o futuro do clube: a criação de um programa de sócio torcedor.
Não conheço ninguém que seja contra a criação de um programa de sócio torcedor, mas nove entre dez flamenguistas que o defendem publicamente miram, sobretudo, a possibilidade de renovar o colégio eleitoral do clube, dando à torcida o direito de participar ativamente da vida política do CRF.
O Flamengo, todos concordamos, tem muitos e muitos problemas, mas um deles, acreditem, não é falta de democracia. Pelo contrário, o clube é um dos mais democráticos do país, porque não há qualquer restrição em se associar (afora, claro, a questão econômica, porque não é tão barato) e nem há tantos embaraços a que um interessado possa se candidatar à presidência, sem contar que todos os sócios proprietários (há mais de 5 mil) podem participar do Conselho Deliberativo, se o desejarem.
Portanto, não é democracia que falta no Flamengo, há até quem diga (equivocadamente) que há democracia em excesso.
Apesar disso, cresce a percepção de que a solução mágica para os nossos problemas (muitos problemas, não me canso de insistir) viria de uma associação em massa de um contingente de rubro-negros, todos ávidos por se associarem ao clube tão logo isso seja possível.
Lamento decepcionar essa linha wishful thinking, mas conceder direito de voto a uma nova modalidade de sócios, além de não ser tão simples, não mudaria praticamente nada no cenário político da Gávea.
Eu disse antes que quase não há embaraços para quem quer se candidatar à presidência do CRF, mas isso não significa que não haja alguns requisitos. Há dois, basicamente: ter mais de 35 anos e ser sócio proprietário há mais de 5 anos. Requisitos bem simples de serem atingidos nas condições atuais (ainda devem existir uns 3 mil títulos de sócio proprietário à venda). Estimo que haja uns 3 ou 4 mil flamenguistas aptos a se candidatarem.
Ou seja, ainda que se concedesse direito de voto aos futuros “sócios-torcedores”, eles precisariam escolher entre os mesmos candidatos de hoje em dia.
O que muda, então?
Muda que os candidatos de hoje, que fazem uma campanha para um colégio eleitoral menor, precisariam competir em um cenário muito maior. Isso tornaria a campanha eleitoral mais cara, menos acessível a quem não é milionário, mais dependente de apoios de empresários e caciques políticos, mais difícil a quem não tem articulações internas sólidas.
Em que medida isso realmente pode contribuir para uma renovação no clube?
Um detalhe que costuma passar despercebido por todos que sonham com uma mudança de rumos no clube é que o comparecimento às urnas dos sócios atuais é muito baixo, inferior a 40% do colégio eleitoral.
Quase ninguém é sócio do Flamengo para jogar tênis ou frequentar a piscina, porque para isso há opções melhores e mais em conta. Quem mantém vínculos com o clube em geral o faz por ser visceralmente ligado ao futebol. E por que ainda assim essa gente toda silencia na hora do “vamos ver”?
Uma provável resposta é que as candidaturas não empolgam e que o modo como se dá a política rubro-negra, com um rodízio entre facções internas, não estimula a quem está de fora desse círculo vicioso a participar um pouco mais. Olhar a situação e a oposição, uma falando mal da outra, é como ver um filme repetido na Sessão da Tarde, um eterno retorno, uma desesperança sem fim.
Portanto, parece muito mais simples, econômico e eficaz, ao invés de lutar por uma ilusória adesão em massa de torcedores que hoje não são sócios, somar esforços para identificar, dentre os mais de 60% de sócios ausentes, pessoas íntegras, de boa formação e desejo genuíno de colaborar, que possam, a curto prazo, representar uma mudança efetiva.
Isso não significa, claro, que se deva ser contra a um projeto de sócio torcedor. Como disse, não conheço ninguém que o seja. Só que é preciso ter em mente o que, de fato, representa um projeto desta natureza.
Para o clube, a resposta é óbvia: aumento de receita fixa. Mas não apenas isso. O sócio torcedor fornece uma base de consumidores muito útil para iniciativas mais arrojadas, como marketing one to one, licenciamento de produtos específicos e muito mais. Em resumo, sócio torcedor, quando bem trabalhado, é uma receita adicional para o clube que, a longo prazo, pode ser até mais relevante do que, por exemplo, a venda de patrocínio nos uniformes.
E para o torcedor? A experiência mostra que o propulsor da associação é a facilidade (ou até a exclusividade) na interação com o clube, especialmente na compra de ingressos e descontos em itens oficiais e licenciados. Ninguém se associa sem receber nada em troca, por mais paixão que alimente pelo clube. É preciso que o público alvo seja induzido a participar mediante uma real percepção de que algo lhe é oferecido instantaneamente em troca de sua mensalidade.
Por último, mas não menos importante, para aqueles que ainda sonham que o Flamengo possa, em um futuro próximo ou mesmo longínquo, introduzir um programa de sócio torcedor com direito de voto direto e universal, não custa lembrar que essa medida teria que ser prevista em uma alteração dos atuais estatutos do clube, a ser aprovada pelo atual Conselho Deliberativo.
Em outras palavras, é preciso convencer os atuais sócios proprietários, que pagaram relativamente caro para ter direito de voto, a compartilhá-lo com milhares de pessoas que pagariam, pelo mesmo direito, algo como 10 vezes menos. Convenhamos, não parece uma tarefa fácil. Em política, o melhor que a gente pode fazer é lutar pelo aquilo que é possível realizar, ao invés de alimentar ilusões sobre um mundo melhor, mas claramente utópico.
Uma mudança, a curto prazo, é possível e até mesmo provável, desde que se aprenda a lutar com as armas certas, o entendimento correto. Mas estou convencido de que essa mudança nem de longe passa por inchar o colégio eleitoral – ao contrário, me parece até que seria uma decisão equivocada insistir nisso.
No próximo artigo, vou comentar alguns projetos de sócio torcedor bem sucedidos em clubes brasileiros. Nenhum deles, posso adiantar, concedeu real direito de voto aos envolvidos.
* Por Walter Monteiro - Embaixador Oficial do Flamengo no Rio Grande do Sul, sócio-proprietário do clube (mesmo morando em Porto Alegre) e escreve a coluna Bissexta no Blog Ouro de Tolo.