terça-feira, 15 de maio de 2012

Reflexões sobre o Flamengo (parte 4) – CLUBE S/A E SUAS ILUSÕES. Por Walter Monteiro





Nove entre dez defensores de mudanças no comando do Flamengo anseiam pela transformação do clube em uma empresa, mais especificamente uma sociedade anônima. Exemplos europeus de sucesso dessa transformação alimentam as ilusões em torno do tema.

No caso específico do Flamengo, a criação de uma espécie de “Flamengo S/A” ou “Flamengo Futebol” (segundo alguns de seus partidários menos éticos) ainda teria o benefício adicional de congelar as dívidas acumuladas pelo clube na estrutura antiga, uma solução heterodoxa que dividisse o Flamengo entre a “banda boa” e a “banda podre”, deixando a imensa dívida como herança para os sócios.

Há uma diferença sensível de concepção entre um clube e uma S/A. O dirigente do clube deve satisfações ao universo de associados, uma massa disforme, onde cada membro tem rigorosamente o mesmo poder. Já o dirigente de uma S/A deve muito mais satisfações ao acionista controlador que à assembléia de acionistas.

O que parece escapar aos entusiastas dessa solução é que o ambiente econômico e regulatório do Brasil não é exatamente igual ao da Europa ou dos Estados Unidos (onde as franquias dos esportes locais também são empresas comerciais).

Estou convencido que uma sociedade anônima dedicada à gestão de práticas esportivas poderia se tornar uma presa fácil nas mãos de investidores do ramo. Não dá para descartar a possibilidade de que gente de elevado calibre como Eduardo Uram, Wagner Ribeiro ou até Ronaldo Fenômeno (arghhhh!) assumam o controle do Flamengo S/A e passem a ditar os seus rumos segundo suas próprias conveniências.

Aliás, até na Europa há exemplos de times cujo controle societário é transferido sem qualquer tipo de restrição, para gente de duvidosa reputação.

Mas enquanto na Europa o padrão dos aventureiros é injetar dinheiro de origem nebulosa em troca de prestígio para magnatas que não têm mais onde gastar, o investidor típico do futebol brasileiro é um negociante de atletas, com visão de retorno rápido do capital investido. Qualquer clube que se transforme em empresa será um chamariz para essa gente, que, na qualidade de acionista (ainda que não formalmente controlador) poderá se valer de mecanismos diversos para impor sua vontade.

O alerta vale mesmo para o caso de uma sociedade anônima onde o clube seja o controlador. Primeiro, porque a futura S/A teria de emitir ações em favor do clube e os desdobramentos a partir daí, inclusive quanto aos credores, passa a ser incerto. Segundo, porque o excesso de regulação jurídica no universo das S/A pode gerar empecilhos de toda sorte, em um modelo totalmente desconhecido. E terceiro, o mercado acionário brasileiro, que ainda é muito incipiente, vem se sofisticando a cada ano e não há como descartar, totalmente, a possibilidade de uma oferta hostil pela tomada do controle.

Portanto, longe de ser uma solução definitiva para os problemas de gerenciamento e financiamento, a transformação do Flamengo ou de parte dele em uma empresa pode ser, ao contrário, uma tremenda dor de cabeça.

Quero ainda lembrar que os clubes de futebol, por serem instituições sem fins lucrativos, sofrem uma tributação bem baixa – a maioria daqueles impostos que o Michel Levy, na maior cara de pau, diz que às vezes deixa de pagar “um imposto aqui, outro ali”, são tributos incidentes sobre a folha de pagamento, porque diretamente sobre a arrecadação do Flamengo a carga tributária seria de uns 4%, a julgar pelo Balanço Patrimonial.

Obviamente que o cenário fiscal se agravaria muito em uma sociedade anônima . Dá para especular que pelo menos uns 20% do faturamento iria parar nas mãos do fisco.

E os problemas não terminam por aí.

Quem defende a criação da S/A sequer cogita que o controle não fique nas mãos do CRF.

Sejamos realistas: o mercado, por si só, já seria refratário a um investimento em um segmento tão pouco rentável como o dos clubes de futebol, mas a situação seria ainda pior se o controle permanecesse nas mãos do clube. Afinal, o que atrai investidores de peso é justamente a possibilidade de exercer ou compartilhar o controle.

Para funcionar, teria que ser algo como uma "privatização", o Clube de Regatas do Flamengo abrindo mão para sempre de gerir a marca e o futebol, ficando apenas como detentor de uma 'golden share' para opinar em matérias chave. E seria difícil, muito difícil, convencer os sócios proprietários do clube a tomarem essa decisão.

Isso eu falo no plano teórico, apenas.

Porque, na prática, dado o mercado atual de investidores em futebol no Brasil, a opção seria temerária. Os investidores institucionais qualificados teriam empecilhos para participar do projeto, porque o rating da futura Fla S/A tende a ser baixo.

Quem nos restaria? O capital volátil e, sobretudo, os já citados investidores tradicionais do segmento - as Traffic e 9nes da vida. Todos com visão de curto prazo e baixo comprometimento institucional. Além de não serem nenhuma referência de ética e gestão.

Sem contar que a minha aposta é que logo após o IPO (a oferta pública inicial, que representa a abertura do capital em bolsa de valores) as ações sofreriam uma queda vertiginosa. Isso já é comum com empresas sólidas, imagina com uma empresa de futebol, cujo fluxo de caixa é diretamente influenciado pela incerteza dos resultados.

Isso traria um efeito colateral deletério. Quanto vale a marca Flamengo, cujo real valor hoje remanesce no imaginário intangível? Eu não sei, ninguém sabe. Mas no exato instante da criação da S/A ela teria que ser valorada, para poder fixar o preço das ações. Afinal, perdoem a linguagem um pouco mais hermética, o CRF vai integralizar o capital social da futura S/A com a sua marca, recebendo em troca as ações.

Que fique bem claro: se a marca do Flamengo hoje vale o infinito, no exato instante da criação da S/A ela passa a ter um valor definido, expresso em ações.

E se as ações caírem logo depois do IPO, a conclusão é simples: o mercado decretou que a marca Flamengo vale menos do que a gente imaginava. A recuperação pode ser lenta, ou talvez nem vir. Isso será desastroso para a captação de dinheiro no futuro.

Por isso, sou contra a criação da Fla S/A. É risco demais, só para nos livrarmos dos dirigentes de sempre. Há, por certo, caminhos mais rápidos e seguros.

Mas em um ponto eu concordo integralmente com quem defende a criação da S/A. O padrão de exigência necessário ao IPO deve ser implantado no clube com urgência. Princípios de Governança Corporativa, responsabilidade orçamentária e profissionalização da gestão são imprescindíveis em uma organização que arrecada mais de US$ 100 milhões/ano, com potencial para arrecadar ainda mais.

Isso é inadiável.

Mas eu acredito que há uma forma mais inteligente de se fazer isso sem correr os riscos de uma S/A. Volto ao tema no próximo artigo.

Walter Monteiro
Embaixador Oficial do Flamengo no Rio Grande do Sul, sócio-proprietário do clube (mesmo morando em Porto Alegre) e escreve a coluna Bissexta no Blog Ouro de Tolo.

2 comentários:

  1. Walter,

    Não quero ser o desmancha prazeres, mas...

    Após ler seu novo texto, bastante esclarecedor por sinal, verifico que estamos presos e assim continuaremos por longos anos.

    Meu caro, o que menos importa é o regime, como na política o que importa mesmo são as pessoas que exercem o poder.

    Lembre-se que independente de forma, regime ou como queira chamar, é necessário que quem ou “quens” estiver(em) no poder seja(m) pessoa(s) de caráter.

    Esse é o grande problema. Achar essas pessoas já é complicado, juntá-las em um grupo outra complicação e deixa-las trabalhar outra.

    Mesmo assim, como em qualquer atividade, para exercer suas funções esse grupo terá que lidar com as Federações, a CBF, os agentes dos jogadores, políticos e demais envolvidos.

    Sabemos que nesse universo de envolvidos, pessoas sérias e descentes, é o que menos se encontra.

    Sendo assim, independente de regime, não há como funcionar.

    Simples assim.

    Saudações,

    @Papo_de_Cozinha

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  2. Sempre pensei que a criação da S.A fosse a única saída para que a Profissionalização, Responsabilidade Orçamentária e Governança Corporativa do FLAMENGO, realmente entrasse em prática.

    Depois da ótima explanação, principalmente quando se fala em VALOR da marca FLAMENGO, passei também a ter dúvidas sobre este tipo de mudança.

    Aguardo ansioso o próximo texto, para ouvir/ler sua a sugestão!!!

    @wgcwallace

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